quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Obituário - Toni Packer



  Ao ser indagado uma vez sobre como ele enxergava o futuro do zen nos EUA, o mestre Shunryu Suzuki respondeu: “Colorido”. Entre as facetas mais interessantes da geração que não necessariamente teve um mestre zen japonês ou coreano, encontra-se Toni Packer (1927-2013). Descrever seus ensinamentos, no entanto, não é fácil, porque ela abre mão de métodos, conceitos, ideias e padrões fixos, de um caminho espiritual definido, ou de ‘escadas de progresso’ nesse caminho; prefere à relação professor–estudante o diálogo, no qual se descobre juntos, a partir do zero (“from the scratch”), o que uma certa pergunta permite revelar.

   Nascida na Alemanha, de mãe judia, vivenciou os bombardeios devastadores na cidade de Leipzig durante a segunda guerra mundial, a partir de 1943. Neste período, a sua família também viveu sob constante medo de ser levada para os campos de concentração. Essa experiência, na qual não havia nenhuma segurança, nada em que confiar, provocou a pergunta “Qual é o significado desta vida completamente sem sentido, dominada pelo medo?”, fundamental para sua futura procura espiritual. Nos anos 50, seguiu seu marido Kyle Packer para os EUA, onde adotaram um bebê. Kyle tornou-se professor e, mais tarde, diretor de escola, e Toni estudou psicologia.

   Em 1967 entrou em contato com o centro zen de Philip Kapleau (autor do livro “Os três pilares do Zen”) em Rochester (estado de NY). Kapleau havia recebido dois anos antes, do mestre zen Hakuun Yasutani, a permissão para ensinar. No final dos anos 70, Toni foi escolhida por Kapleau como sua sucessora para conduzir o templo de Rochester.  Em parte influenciada pelos ensinamentos de Jiddu Krishnamurti, no entanto, Toni foi ficando cada vez mais em dúvida sobre a validade das tradições e rituais do zen e do budismo em geral. Embora o próprio Kapleau tivesse rompido alguns anos antes com o seu mestre Yasutani, que não aceitava qualquer adaptação dos ensinamentos e rituais de sua tradição zen às condições do ocidente, as bruscas mudanças que Toni agora tinha em mente foram para ele e boa parte dos membros do templo longe demais.

   Em consequência, a sangha de Rochester dividiu-se, e um pouco mais da metade dos estudantes seguiu Toni. Pouco tempo depois, ela fundou o “Genesee Valley Zen Center”, distante cerca de uma hora ao sul de Rochester, mais tarde renomeado como “Springwater Center”. Desde então, foram realizados regularmente retiros de meditação nesse centro, sempre em silêncio, a não ser nas horas de palestras e conversas programadas, estas últimas em grupos, ou apenas com Toni. Mais tarde, ela também ministrou regularmente retiros em outras partes dos EUA e na Europa.

   A divisão dolorida de um centro zen muito importante, a desistência explícita ou o questionamento profundo de suas instituições, tradições e vários dos seus ensinamentos, geraram muita discussão nas comunidades budistas dos EUA. Toni foi alvo de muitas críticas, inclusive de estar ‘batendo’ (“knocking”) no budismo. Essa reação é um tanto surpreendente, pois o próprio Buda foi explicitamente crítico às tradições (Anguttara Nikaya 4.193 – Bhaddiya Sutta). Nesse sentido, Toni respondeu a essas críticas como segue: “Seu ensinamento [o de Buda] foi compreender ’o eu’ profundamente, de forma clara, total – para ver a verdade sobre ’o eu’, seu sofrimento inevitável, e ir além. Buda advertiu seus ouvintes a não aceitar a palavra falada, nem a tradição, nem o que está escrito em uma escritura, nem a aparente capacidade de alguém mais, nem a consideração ‘este é o nosso professor’. ‘Sejam uma luz para si mesmos’, foram as palavras do Buda ao morrer, ‘não procurem salvação em nenhum refúgio externo. Refugiem-se na verdade. Não procurem refúgio em ninguém além de si mesmos’. Como se pode ‘bater’ nisso?” .

   Por experiência própria, Toni continuou convencida das “verdades” do budismo sobre anattā (inexistência de um “ego” separado) e iluminação. E da importância da meditação, livre e sem esforço, sem alvo, sem expectativa, e do valor de retiros em silêncio, mas retiros nos quais quase nenhuma atividade seja obrigatória para os participantes. Toni enfatizou insistentemente a importância de uma presença completa, momento após momento. Na meditação, além da prática da atenção pura e aberta, sem alvos e sem julgamentos, ela sugeriu o que chamou de “investigação meditativa”. Isso é basicamente o seguinte: ela sugere para a pessoa que está meditando que às vezes se pergunte, por exemplo, “de onde vem esse sentimento agora?”, ou “o que está acontecendo nesse momento, por dentro e por fora?”, ou talvez considerar grandes questões como “quem sou eu?”, ou “qual é o sentido da vida e morte?”, etc., mas sempre deixando as perguntas abertas num “sem-saber”, sem forçar, até sem esperar uma resposta. Ficando assim aberto, apenas observando, mas completamente presente, pode-se vivenciar “uma crescente transparência dos pensamentos e imagens e seu poder de manter esse corpo enraizado num drama emocional, de tragédia e comédia”. Talvez a atenção exploradora sobre o que está acontecendo a cada momento também permita enxergar diretamente que “esse pensador, esse agente, é o próprio pensamento”. Mas Toni estava convencida de que, em respeito à iluminação, não existe o efeito de uma causa, citando as palavras do Buda sobre a existência de “um não-nascido, não-originado, não condicionado, não-criado”, sem a qual não seria possível ver como escapar do nascido, originado, condicionado, criado (Udāna 8.3).

   Enquanto alguns a criticaram por ter abandonado tradições e instituições sagradas, outros defenderam Toni, reconhecendo sua importância para o desenvolvimento do zen no ocidente, por exemplo,
 Charlotte Joko Beck: “Toni nos sacode para fora dos ramos da nossa árvore para que possamos ver a raiz.”
 Ou Jack Kornfield: "Toni Packer é um tesouro. Com uma investigação profunda e exigente de um mestre zen, ela convida-nos de volta ao mistério e à maravilha, a redescobrir a inocência e a totalidade que são a nossa própria verdadeira natureza.”

   Dos livros de Toni Packer, geralmente compostos por ensaios, palestras, conversas e cartas trocadas com estudantes, apenas um foi traduzido para o português: “O milagre do agora” (editora Nova Era, 2011). Vale a pena a sua leitura e se perguntar, honestamente, o que essas investigações podem significar para o nosso próprio caminho espiritual. Mas sem esperar uma resposta...

                                                                                      (Volker Bittrich)

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